“Cópias do abandono” é um trabalho de pesquisa desenvolvido pela artista mexicana Sandra Calvo entre 2016 e 2018. Composto por uma série de videos, arquivos, desenhos e depoimentos, o resultado de sua extensa pesquisa de campo foi transformado em uma espécie de instalação audiovisual, a qual foi recentemente escolhida para ser apresentada no Pavilhão do Mexico na Bienal de Veneza de 2021. O trabalho de Sandra Calvo procura reunir evidencias sobre o impacto dos processos migratórios na arquitetura, principalmente entre o México e os Estados Unidos. Ela se concentra em refletir sobre a relação ambígua que se cria entre as casas onde os migrantes trabalham nos Estados Unidos, e as casas que eles constroem com o fruto de seus suor em seu país de origem, o México.
A investigação artística de Calvo gira em torno da luta constante por moradia, e em como os laços familiares e as raízes de um povo se materializam—através dos processos de autoconstrução—em palácios e mansões que encontram-se no limite entre a realidade e a fantasia. Apesar dos recentes avanços, os processos migratórios na América dão Norte segue sendo um resultado imediato das condições de desigualdade e violência que caracterizam a região de fronteira entre os dois países. Até o momento, os mexicanos seguem em primeiro lugar no número de imigrantes—legais e ilegais—que atravessam a fronteira dos Estados Unidos todos os anos.
Como a própria pesquisa revela, apenas no estado de Wyoming, 80% dos migrantes são originários de uma mesma região do país, particularmente de Tlaxcala, México. Exemplos como este podem ser encontrados em todo o território nacional, um fenômeno que está impulsionando uma relação de proximidade entre as comunidades de dois países, e mais especificamente, de duas cidades; como é o caso de Puebla–Nova Iorque e Tulancingo—Salinas, entre tantas outras.
Texto por Sandra Calvo.
Esta pesquisa procura revelar as diferenças e semelhanças nas condições de vida entre os dois países, os desejos de uma população marginalizada, suas conquistas e dificuldades encontradas pelo caminho, e como tudo isso se reflete na arquitetura e finalmente, na estrutura de nossas sociedades. O projeto artístico de Sandra Calvo se divide em três elementos principais:
- A casa habitada. Terrenos, barracos, trailers, quartos de motel e porões onde vivem os trabalhadores mexicanos na vila de Jackson Hole, Wyoming. Situações de vida precárias, espaços que mal cumprem as funções mais elementares e básicas de sobrevivência. Nestes “espaços habitados”, mas nem sempre habitáveis, famílias inteiras dividem um mesmo quarto, as vezes uma mesma cama. Assentamentos irregulares sob constante ameaça de despejo, lugares concebidos como temporários que se tornam permanentes, estruturas instáveis e isoladas e na maioria dos casos, com aluguéis caros e muitas vezes impraticáveis.
- A casa modelo. A “casa modelo” são as estruturas que os migrantes, trabalhadores da construção civil, constroem para seus empregadores em um prepotente e presunçoso contexto como é o interior do Wyoming com suas mansões e estruturas de luxo que permanecem vazias durante a maior parte do ano. Ainda assim, estas casas monumentais são mantidas impecáveis dia após dia: jardineiros, governantas, cozinheiros; estruturas as quais, em muitos casos, são mantidas pelos próprios migrantes. Este é o modelo a ser seguido, e mais cedo ou mais tarde, é isso que cada um deles acaba no fim desejando para si mesmo e seus familiares.
- A casa dos sonhos. É deste desejo que nasce da imagem da casa sonhada que, através de seus próprios meios e métodos eles constroem para seus familiares em suas cidades de origem. Como um passo maior que a perna, a construção destas casas—que pretendem mais ser um símbolo de status do que um espaço habitável—se arrastam por décadas e décadas e a maioria delas nunca chega a ser concluída. Como fantasmas de uma arquitetura que nunca chega a ser, estas casas dos sonhos são a imagem e semelhança de uma realidade outra: escadarias monumentais, telhados em mansarda, varandas com arcadas, colunas gregas, garagem enormes e jardins paisagísticos. A dissemelhança entre estas duas realidades nem sempre encontra-se na arquitetura, mas na falta de serviços públicos e infra-estrutura básica, bem como no valor da terra e nas oportunidades que tanto faltam em um lado deste muro. O processo de (auto)construção é dirigido remotamente através de um fluxo inconstante de informações e dinheiro. Os migrantes enviam estas remessas com fotografias, recortes de jornais e revistas além de esboços desenhados a próprio punho—indicando como a tão sonhada casa deve ser construída. Em geral, estas estruturas sombrias se constroem no mesmo terreno ou muito próximas do lugar onde vivem os familiares destes migrantes, um símbolo do enraizamento, do sentimento de pertencimento e também de uma urgente necessidade.
O projeto destas casas nunca é delegado a um especialista, um construtor ou arquiteto. Estas estruturas são construídas pelos próprios familiares, por seus parentes próximos ou pelos próprios trabalhadores em suas raras visitas. Obviamente, isso se traduz em problemas estruturais gravíssimos que não tão raramente acaba por arruinar o sonho da tão idealizada casa própria. Entretanto, a ausência da figura do arquiteto, neste caso, não se traduz necessariamente na inexistências de arquitetura, projeto ou até mesmo, sonho. Como um navegante à deriva, os processos de autoconstrução são caracterizados por uma total liberdade, podendo ser alterados e transformados a medida que as paredes vão subindo. Uma vez concluída a estrutura básica, estas casas permanecem vazias por anos e anos, transmitindo uma sensação ambígua em que não se sabe se a casa encontra-se em processo de construção ou deconstrução, um passo para frente e outro para trás, um processo contínuo que parece nunca chegar ao fim.
Uma casa dos sonhos que, infelizmente, parece nunca sair do mundo das fantasias, mas que ainda assim os motiva a seguir em frente, trabalhando duro para alcançar um futuro idealizado que corresponde a realidade na qual eles encontram-se imersos neste exato momento. E este não é um fenômeno isolado, é um padrão que se repete nos quatro cantos do país, uma arquitetura que parece estar de acordo com a realidade econômica de um mundo globalizado, que nasce tanto da lógica do livre mercado quanto da suposta lógica da livre circulação de bens e pessoas. Paralelamente, estas casas são construções utópicas, as quais refletem uma condição de abandono: de afastamento de um determinado território, de deslocamento em relação as raízes uma família, e da negligencia para com uma paisagem deserta.
Embora o projeto artístico de Sandra Calvo abranja vários diferentes estudos de caso, um exemplo foi explorado pela artista em detalhe: o caso de Abraham Hernández Bautista. A pesquisa visual de Calvo revela um jogo duplo, onde por um lado temos o sonho impossível da família que fica e, por outro, a fantasia utópica do migrante que se foi.
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Sandra Calvo é artista visual radicada na Cidade do México. Calvo recebeu seu título de mestre em Artes Livres (Cinema, Urbanismo, Antropologia e Estudos Pós-coloniais) pela The New School for Social Research, Nova Iorque, além de ser Licenciada em Ciências Políticas pelo Instituto Tecnológico Autônomo da Universidade da Cidade do México com uma breve passagem por cursos de Sociologia, a Filosofia e História na Universidade de La Habana, Cuba. Seus projectos caracterizam-se por uma marcada componente contextual, participativa e processual - uma vez que se destinam a comunidades e espaços específicos. Eles geralmente se desenvolvem em longos períodos de pesquisa e são determinados por soluções híbridas que reunem várias áreas do conhecimento. Seus trabalhos são apresentados geralmente na forma de video-documentário, filmes de arquitetura, instalações, etnografia, arqueologia, fotografia e narrativa visual. Sua obra carrega tanto um posicionamento político quanto uma proposta estética, focando em problemas relacionados à crise habitacional, aos processos migratórios, a informalidade, a autoconstrução, a apropriação do espaço, os desabrigados, os despejos e a auto-organização como uma forma de resistência e atuação política.